A volta ao mundo em 80 catástrofes

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O céu está a descer.

Despojemos a morte da sua estranheza, frequentemo-la, habituemo-nos a ela; que nenhum pensamento seja mais comum que o da morte… Não sabemos onde ela nos espera; esperemo-la então em todo o lado. A prática da morte é a prática da liberdade.

Montaigne, Ensaios

No início, contam os mitos, o ser humano era totalmente uno. Habitava um estado de abundância sem limites, sem ódio, sem desejo, sem criatividade, permanente e imóvel. Não há liberdade no Paraíso, e assim a morte aparece, no seu sentido mais profundo, para transcender os limites, para criar espaços habitáveis para a existência. Irrompendo na trama como resultado de um ato de desobediência ou como erro, a morte é o acontecimento excecional que nos empurra para uma vida efémera, interdependente e em constante movimento.

Enquanto fenómeno biológico, a morte é também profundamente ecológica. O devir da nossa espécie, marcado pela ideologia do progresso ilimitado, mostra sinais inegáveis de colapso, e é urgente aceitar que a vida, individual e coletiva, só é possível com a ideia de finitude, de transitoriedade. Não é possível habitar a terra sem habitar a morte. Contra todas as evidências, a racionalidade científica ocidental continua a oferecer-nos promessas de redenção, convidando-nos para os paraísos artificiais do capitalismo verde. Continuar a confiar nas virtudes do domínio humano sobre a natureza é a melhor forma de extinção.

Num sistema que parece repetir-se nas suas variações, a catástrofe irrompe como uma descontinuidade, como uma novidade repentina, entre o acidente e o apocalipse – um acontecimento que é anunciado para evitar a sua chegada. A excecionalidade da catástrofe não reside na sua capacidade de transformação, mas naquilo a que Frederic Neyrat chama história da catástrofe, ou seja, as suas causas (políticas, económicas, ontológicas, geológicas, etc.), numa abordagem essencial para as compreender não enquanto acontecimentos pontuais e isolados, mas como manifestações de um processo em curso. Um processo que a biopolítica da catástrofe tentará negar, para que tudo possa continuar como se nada tivesse acontecido.

Morte e poder aliam-se para gerir o direito de matar, ditando quem pode viver e quem deve morrer. Genocídios, massacres, execuções, atentados. A domesticação da guerra é o maior exemplo da dissolução da consciência da morte, uma tentativa de civilizar os modos de matar, atribuindo objetivos racionais ao massacre. Entre eles, as guerras coloniais – clímax da racionalidade ocidental, cega entre o massacre e a burocracia – são a expressão da hostilidade absoluta. No imaginário político europeu, a colónia representa aquele lugar onde se exerce um poder fora da lei, onde a existência do outro é entendida como atentado.

Portanto, restabelecer a nossa relação com a morte é um ato de resistência que reclama a soberania sobre os nossos próprios corpos, rejeitando a subordinação das nossas vidas aos limites impostos pelo medo. Porque não há gestão possível do risco. Existe um limiar para além do qual a proteção destrói a vida. A fantasia da segurança absoluta e a sua oferta preventiva analgésica ignora a morte e mantém intactas as relações de poder e os fatores estruturais que originaram o problema, impedindo a mudança de paradigma, legitimando a necropolítica como forma de governo e perpetuando um modo de vida cada vez mais incompatível com a própria vida.

Precisamos de novas imagens que evoquem a nossa vulnerabilidade, que evidenciem os nossos limites. Escolhemos permanecer em risco, necessariamente vulneráveis. Escolhemos manifestar o dano, tornar visível a ferida para reclamar uma transformação das nossas formas de habitar o mundo. Sem fatalismos que deem por findo o jogo, nem miragens publicitárias de um novo começo. Como diria Donna J. Haraway, viver e morrer com respons-habilidade numa terra danificada é aprender a estarmos verdadeiramente presentes. O mundo não acabou e o céu não caiu – ainda.