Já estamos livres da catástrofe porque somos a própria catástrofe.
Lígia Soares, “Memorial”, 2020
A volta ao mundo em 80 catástrofes – Especial Portugal é uma ação/edição poética/política editada como guia turístico e que mapeia 80 + 24 monumentos e memoriais que assinalam no espaço público os detonadores de catástrofes: o fenómeno natural, o capitaloceno, a necropolítica e o acidente. Também é um livro-amuleto contra catástrofes e recomenda-se que seja usado junto ao corpo, pendurado ao pescoço com uma fita de veludo rosa.
A associação do título ao clássico de Jules Verne (1872) sugere, na relação espaço-tempo que convoca e nas suas condições de produção, algumas palavras fetiche com um eminente valor ideológico. Numa leitura crítica, Phileas Fogg não viajava, desenhava uma circunferência, unificava o mundo a partir do mapa imperial inglês. Este “novo mundo” é apresentado como um paradigma de hierarquização entre comunidades criando um discurso que estigmatiza o outro, colocando-o em posição de inferioridade e em condições para ser dominado. A lógica é a do paternalismo e da subordinação. A única mulher que surge na trama, embora indiana, tem uma aparência europeia e só por isso pode ser resgatada de um costume considerado bárbaro. Nada mais importa, apenas o relógio e a velocidade para ganhar uma aposta feita num aristocrata clube londrino. Verne relata o catastrófico legado da colonização e da revolução industrial e energética regulada pelo sujeito (branco, macho, hetero e rico) do norte global.
A definição de catástrofe depende de muitos fatores locais e globais e camadas de relações de poder. Raramente é fornecida pela comunidade vítima de catástrofes, que também não tem uma palavra a dizer na gestão de catástrofes a curto ou longo prazo. Na maioria dos casos, a catástrofe é definida por agentes que não estão diretamente envolvidos e não é assumida como o resultado da interação entre agentes humanos, não humanos, orgânicos e inorgânicos. Na materialidade da agência, que é uma realidade material que vê todos os componentes e fatores envolvidos na criação de fenómenos como «agentes», os seres humanos não são o único agente nem tampouco as vítimas irrepreensíveis. São agentes agredidos que podem influenciar e alterar os contextos físicos e biológicos em que vivem, ao mesmo tempo que são influenciados e alterados por eles. Quando vista desta perspectiva, a narrativa que explica os recentes fogos catastróficos em Pedrogão, intimamente associados à integral reconstrução da natureza em áreas florestais e à ineficácia de meios de combate, como sendo provocada apenas por uma causa natural, não é particularmente plausível. Mais, evocar uma Gaia vingativa é atribuir-lhe não apenas uma memória, mas também uma interpretação do que acontece em termos de intencionalidade e de responsabilidade. Pelo mesmo motivo, falar da “desforra” de Gaia é mobilizar um tipo de psicologia que não parece pertinente: vai-se à desforra quando a questão da ofensa é da ordem da constatação. Não se luta contra Gaia. Se é importante lutar, a luta é contra o que provocou Gaia e não contra a sua resposta.
As catástrofes redefinem a memória colectiva e a experiência das comunidades. As existências são provocadas, desestabilizadas, agitadas, e as vidas humanas são suspendidas na durabilidade do seu efeito. Embora as catástrofes ocorram durante um determinado momento, existe uma temporalidade que as transcende, marcando diversos debates sociais e políticos: a guerra colonial portuguesa (1961-1974) e a mega operação de invisibilização dos massacres cometidos contra civis em Angola, Moçambique, Guiné, São Tomé e Cabo Verde, o 11 de setembro de 2001, a globalização e o discurso catastrofista sobre o islamismo e a emigração, o furacão Katrina e a visibilidade de um apartheid social dos mais desfavorecidos condenados a permanecer sem ajuda enquanto os ricos fugiam de Nova Orleães, os incêndios de Pedrogão em 2007 e a instrumentalização da dor e dos abrigos por agentes políticos corruptos, a queda de uma ponte em Entre-os-Rios e a negligência estatal face ao estado do património construído e aos assoreamentos, legais e ilegais, dos rios e albufeiras, o ecocídio e alienação ilegal de territórios de comunidades indígenas, o movimento de turístas na cidade de La Palma durante a erupção vulcânica em 2021 perturbando o processo de reconstrução e reparação do trauma e luto locais, entre muitos outros exemplos. E lá temos Fukushima, que rima com Hiroshima e uma grande produção/ficção narrativa criada e mantida por aqueles que detém o poder e a hegemonia. A vida e a morte estão organizadas em torno do risco assumido das dinâmicas predatórias do capitalismo e da necropolítica. Complexas relações entre capitalismo, colonialismo, desigualdades sociais e geno-eco-cídios.
Os monumentos e memoriais a catástrofes no espaço público expressam significados, sensibilidades, representações narrativas e imagéticas de momentos de ruptura trágica com a aparente estabilidade quotidiana. O que se teme numa catástrofe é a perda de vidas humanas. Na modernidade, após uma tragédia coletiva logo surge a ideia de construção de um monumento ou memorial em homenagem às vítimas. Seja uma epidemia, uma guerra, um massacre, um ciclone, etc. Os memoriais que mapeámos funcionam como marcadores de memória, mas também como afirmações de resistência e até funerais simbólicos, quando os corpos das vítimas desapareceram. O monumento amplia a nossa visão crítica para as coisas do mundo. Ele permite mostrar que a tecnologia gera conforto, mas também catástrofes. Os vários monumentos sobre tragédias relacionadas a erros na utilização de tecnologias – acidentes aéreos, ferroviários, nucleares – demonstram que onde há progresso pode haver catástrofe. Ajudam a superar o trauma, expondo também imagens alegóricas das tragédias. Os monumentos são assim poderosos arsenais que revelam discursos e denunciam atrocidades passadas. Não esquecer é um ato de resistência e o monumento também cumpre essa função de “despertar as centelhas da esperança” ao contribuir para que os erros do passado não ressurjam novamente. Por isso faz todo o sentido demolir simbolicamente estátuas, é urgente ressignificá-las, e assim mantê-las como espaços de conflito, como gatilhos para uma leitura crítica da história, para que o seu pedestal vazio não nos convide a perder a memória da catástrofe.
O dever de restituição e de reparação são os primeiros passos para uma verdadeira justiça planetária. Terminamos a assinalar uma ausência que por estar tão presente se torna motivo de espanto e de angústia. Portugal foi um dos países promotores do esclavagismo, a cana do açucar o seu detonador e aguardamos desde 2019 a construção do Memorial às Pessoas Escravizadas em Lisboa, essa cidade construída também com o sangue das pessoas escravizadas. Nas paisagens arruinadas do plantationceno e do capitaloceno, cada dia é uma catástrofe na volta ao mundo que vos oferecemos. Boa viagem.